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As redes sociais e o auto-domínio

Francisca Silva

Já havia sido notada uma espécie de migração da vida social para a esfera virtual após o advento da Internet, mas foi o ano de 2020 que precipitou este movimento de forma exacerbada. O confinamento colocou-nos sem alternativa, já que não é próprio do homem o isolamento social, então fizemos das redes sociais a nossa principal ágora. Muitos haviam alertado para o perigo desta substituição e hoje experimentamos em primeira mão as consequências.

 

Quando conhecemos alguém em pessoa conversamos sobre coisas triviais e leves, curiosidades e peculiaridades, e são estas conversas aparentemente insignificantes que vão começando por construir os laços. De seguida, as conversas profundas criam a intimidade e as situações que desvelam o nosso carácter solidificam esses laços. Os assuntos de cariz político fortalecem ou quebram os laços, visto que eles tratam de revelar as afinidades morais, ideológicas e, por assim dizer, cosmológicas.

 

Um outro factor próprio das relações humanas presenciais é a afinidade, por falta de melhor termo, “química”. Refiro-me a uma afinidade que é, por um lado, corporal, feromonal, e por outro, verdadeiramente empática e simpática. Esta simpatia é a base da qual emerge em nós a capacidade de tratar bem o outro.

 

Nas redes sociais este processo é diferente. As afinidades são sobretudo ideológicas e as simpatias poupadas. Na vida social presencial somos forçados a lidar com pessoas de todo o tipo e as regras não escritas de decência ajudam-nos a sermos comedidos nas nossas reacções e sermos mais compreensivos. Na presença temos a percepção do tom da pessoa, o que na maioria vezes é um factor atenuante numa discussão, e pode mesmo ser a variável determinante para um entendimento. Nas redes sociais é mais difícil expressar o tom pretendido, visto que lidamos apenas com as palavras, e estas, sem o auxílio da musicalidade das nossas vozes e da dança dos nossos corpos, são frequentemente mal lidas. É preciso ter um bom domínio da linguagem e não somente a posse de uma liberdade de expressão que é pura figura de estilo. Não é por acaso que existem bons escritores e maus escritores.

 

Bem vistas as coisas, o que temos hoje na ágora digital é uma incessante passerelle de “one man shows”, onde os intervenientes apresentam as suas performances sem nos darem a conhecer os bastidores. Em suma, é a vida pública, mas o problema não está no facto de conhecermos apenas o que é público, e sim na nossa pressa em formular julgamentos sobre as pessoas em si apenas com base no que é mostrado em cada espectáculo particular. Devemos lembrar-nos de que há vida para além do Facebook e do Instagram.

 

Porém, nem tudo é mau. Esta “coisa pública” também permite a muitos de nós encontrarem os seus afins, especialmente àqueles cujas ligações geográficas deixam de servir. Como refere S. Tomás de Aquino, “onde está a verdadeira amizade, aí está o mesmo querer e o mesmo não querer, tanto mais agradável, quanto mais sincero". Esta é a maior vantagem que as redes sociais nos trouxeram. Porém, o “mesmo querer” de que fala S. Tomás não é coisa banal. É coisa da alma, diz respeito à causa final, portanto é coisa profunda. E para que afinidades profundas se construam é necessário dissolver os obstáculos erigidos pelo julgamento precipitado.

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As nossas afinidades partidárias revelam algo da nossa visão do mundo e do nosso sentido moral no que concerne à esfera pública e social. Contudo, pela diferença de natureza entre um partido e um ser humano, não é garantido que um possa plenamente representar o outro. Isto é um facto simples e óbvio que na chama dos debates digitais nos escapa, e aqui nos esquecemos que estamos a lidar com pessoas reais.

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Na esfera digital, mais que no caso presencial, a ausência do corpo no debate transforma os interlocutores em símbolos partidários, o que nos leva a discussões infrutíferas e estupidificantes, e pior, pode reduzir-nos a tribalismos e exageros.

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Quanto mais acreditamos que é o nosso partido que vai criar o paraíso na Terra, mais intransigentes nos tornamos. Devemos lembrar-nos de que, embora as nossas ideias divirjam, todos nós somos da mesma natureza, a humana, e esta não é óbvia, mas exige que tentemos compreendê-la.

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Escritora

FRANCISCA SILVA

Da sede de conhecer

Ao abraço do Ser

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