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Memórias Póstumas

de Brás Cubas

1880

Machado de Assis

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Grande é o respeito que tenho pelo génio literário de Machado de Assis, bem como pela agudeza de visão sobre o lado feio da vida humana. Diverti-me bastante nesta leitura, mas foi menor a diversão que a perplexidade – coisa normal ao ler este autor, presumo.

 

A quem pretende conhecer esta obra, deixo uma advertência – a ingenuidade paga imposto caro à entrada deste livro, e de duas formas distintas:

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Primeiro, as “almas sensíveis”, aquelas que esperam e confiam sempre no melhor, varrendo a bizarria latente da natureza humana para debaixo de um grosso tapete, essas poderão sofrer com a honestidade bruta do nosso “Brás Cubas”. Escrevo entre aspas pois acredito que o Brás Cubas que nos narra as suas memórias não é senão o próprio Machado de Assis num disfarce confecionado em cima do joelho. Não que as memórias sejam as do Machado, mas talvez a personalidade se confunda no protagonista.

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Segundo, um outro tipo de alma sensível, um tipo mais burilado talvez, que consegue ver o cortejo da corrupção humana ao mesmo tempo que ouve a música da sua natureza divina, este tipo pode ficar desiludido perante a ode ao niilismo. Ainda assim, fica a questão, se Machado de Assis escreveu sobre o que acreditava ou apenas sobre o que via ao seu redor.

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Uma última nota antes de passar a uma reflexão mais aprofundada: neste livro não é tanto o enredo que importa, mas o modo como expõe a vida humana, os sentimentos que explora, e as ideias com que encerra a narrativa. Por este motivo vou falar pouco do enredo, e mais sobre o conteúdo que lhe dá forma. Também, a minha capacidade seria limitada para abarcar e esmiuçar a totalidade do texto, pelo que me cingirei às ideias que mais me marcaram.

 

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O Assombro

 

Brás Cubas morre e do "outro lado do mistério" começa a escrever as suas memórias. Contrariamente ao defunto autor, que inicia a história pelo fim, eu começo pelo princípio, e o princípio sou eu lendo as Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. O autor é conhecido pelo seu toque humorístico, e é certo que o estilo toca a comédia com uma bela destreza, no entanto a leitura dedicada desvela o vasto e sombrio abismo que se esconde por baixo dessa leveza trabalhada. Pode ser por cinismo, pode ser por necessidade de aliviar o sofrimento humano, mas a realidade descrita é trágica. Há um motivo que trespassa toda esta obra: a busca de uma solução final para o sofrimento, sem nunca encontrá-la, senão na morte. Mas esta morte não é apenas a física, é também a do espírito: é a renúncia às ideias de liberdade e de um sentido divino da vida.

 

A primeira pista do motivo é-nos dada no início do livro. Brás Cubas, já no final da sua vida, tem uma ideia grandiosa: a invenção de “um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”. Ele começa o projecto, mas morre antes de concluí-lo, e só voltamos a ler sobre o medicamento no final do livro. O livro passa-se, portanto, entre a morte e a morte, com a vida no meio, cujas grandes desgraças e pequenas vitórias enfatizam a absurdidade com que o autor – ou o narrador – pinta a vida humana.

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A hipocondria é a "flor amarela, mórbida e solitária" da melancolia que se instala no espírito enfraquecido quando este treme diante da ideia da morte. Uma experiência universal. Em maior ou menor grau, todos passamos por isto. A consciência da morte é um traço peculiar do ser humano. Desta experiência nasce um assombro que nos acompanha desde a descoberta de que vamos morrer até que tal aconteça. Cada um de nós forja as maneiras e instrumentos para viver com esse facto inalienável – por vezes alienando o nosso espírito, mas nunca o facto.

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Como os personagens lidaram com isso? Embora não esteja explícito na história, podemos fazer essa especulação:

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A MÃE

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Pouco conhecemos da mãe de Brás Cubas, apenas que era “uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu deus”, deveras uma caricatura da mulher católica, que tentava doutrinar o filho ensinando-lhe orações. A religião era o seu emplastro anti-hipocondríaco.

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O PAI

 

O pai, Bento Cubas, é uma figura mais presente, senão mesmo um elemento fundamental. Para este pai, o filho é o apogeu da sua auto-realização, em quem ele deposita toda a sua ambição e esperança, ironicamente impedindo o rapaz de encontrar as ambições do seu espírito. Mas o amor deste pai é menos amor do que uma espécie de transferência da sua auto-imagem para o filho. Brás Cubas é apenas um meio de Bento Cubas forjar a sua importância no mundo. E este torna-se um motivo que também marca a vida de Brás – o instinto da procriação como uma forma do homem obter a vida eterna. Eternizar-se no filho era para Bento, o pai, um instrumento para amenizar o assombro da morte, e o desejo de ser pai foi, para Brás, a mesma coisa, embora não o tenha realizado.

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A educação que os pais lhe dão é permissiva e bajuladora, sem grandes regras ou limitações. Brás cresce sem receber o refinamento que é suposto ser entregue pelo papel dos pais, que aliás consideram que a educação que lhe dão é superior à comum.

 

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VIRGÍLIA, A AMANTE

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Entre os planos de Bento para o filho estavam ser deputado e casar-se com a filha de um senhor politicamente influente – o nome da moça era Virgília. Prometidos um ao outro, travaram uma amizade que tocou a intimidade ao de leve, mas a vida tinha outros planos para o casal. Surge a figura de Lobo Neves, um outro pretendente de Virgília, a quem o pai da moça considera mais digno, ainda que “não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático...”.

 

Este desenlace – a ruptura do noivado e a perda do lugar de deputado – levou o pai de Brás ao desgosto e à morte em poucos meses. Anos depois, o casal volta a encontrar-se e aí sim, nasce um amor apaixonado, e tornam-se amantes em segredo. É uma relação que vive do prazer e da adrenalina, e por que não dizer de um certo amor, embora ele não seja o suficiente para assumir a relação perante a sociedade. Em mais que uma ocasião, Brás sugere a Virgília que ambos fujam para que possam casar e fazer vida juntos, mas Virgília não quer, pois está bem instalada: é esposa de um homem social e politicamente bem sucedido com quem tem um filho. O assombro da morte atenua-se nesta personagem pelo preenchimento das lacunas emocionais. Tem o marido que lhe dá a estabilidade financeira, o casamento que lhe dá a boa reputação, o filho que prolonga a sua existência, e o amante que lhe apazigua importantes necessidades femininas. Arriscar qualquer dessas coisas seria confrontar esse assombro.

 

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LOBO NEVES, MARIDO DE VIRGÍLIA​

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Lobo Neves, marido de Virgília, ameniza o assombro por via do trabalho e da reputação. Chega a descobrir o caso da esposa, mas prefere manter as coisas como estão para não assumir o escândalo. De qualquer forma, já toda a gente sabe do dito caso, ou pelo menos desconfia. A prioridade, como para a maioria das personagens, é manter as aparências. É também extremamente supersticioso, o que lhe dá um certo ar de ingenuidade.

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QUINCAS BORBA

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Chegamos ao Quincas Borba, personagem que dá o nome a outra obra de Machado de Assis. Quincas é o cúmulo da fuga ao assombro e simultaneamente da permanência nele. Nesta personagem é ténue a linha entre o génio e o louco, e é dotado de uma inteligência fértil e criativa, como de uma personalidade um tanto pedante. Inventa toda uma filosofia de fuga ao assombro a que dá o nome de Humanitismo. Além de ser "um sistema de filosofia destinado a arruinar os demais sistemas", pretende também ser religião, ou melhor, procura fundir todas as religiões numa grande bolha onde tudo cabe: uma teoria que tudo resolve, concilia e, na verdade, reduz.

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Segundo esta filosofia, tudo é Humanitas – “o princípio das coisas”, que é nada mais que “o mesmo homem repartido por todos os homens”.

 

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“Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige em Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do género humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude”.

 

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A pretensa superioridade desta filosofia vem da acepção de que tudo é bom, o que significa que nada é mau, portanto a dor e o sofrimento são ilusões e nada é imoral. Disto decorre que toda a violência é aceite, senão até considerada virtude. Quincas Borba morre demente.

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BRÁS CUBAS

 

Finalmente, Brás Cubas. Como lidou ele com o assombro da morte? Usando o dinheiro do pai e seguindo os seus planos, vivendo a paixão de Virgília e aceitando as suas condições, assimilando a filosofia de Quincas Borba mantendo-o num frágil pedestal e seguindo os seus conselhos. E, claro, deixando-se absorver pela "flor amarela" da hipocondria - a entrega ao niilismo.

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Mas após páginas e páginas de peripécias corriqueiras que mostram uma pessoa de pouco espírito, muita aparência e raro sucesso, um dos capítulos finais afigura-se enigmático. Conta-nos o narrador que se afiliou à “Ordem Terceira de ***”, onde realizou verdadeiramente o serviço mais nobre da sua vida, mas não falará sobre isso. Parece que as Memórias foram escritas para mostrar a facilidade do vício e denunciar as vidas corrompidas, ao passo que o que se faz de bem não precisa de publicidade. Aliás, como fica claro na personagem de seu cunhado Cotrim, a propaganda da virtude termina por desvirtuá-la. Ainda assim, o nosso Brás não se aguenta e revela que essa foi a sua fase mais brilhante, que exerceu vários cargos na Ordem e prestou cuidados sociais aos doentes e aos pobres, ganhou boas recompensas e uma excelente ideia de si mesmo.

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E eis que no final da vida aparece a ideia grandiosa – o extermínio absoluto da melancolia – mas até essa ideia veio regada pelo fito de eternizar o nome Brás Cubas.

 

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Brás de Assis

 

À medida que ia conhecendo o Brás, uma pergunta ia se agravando na paisagem da minha mente que clama por sentido: como é que o Brás Cubas descrito nestas páginas é o mesmo que se descreve?

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Ao pensar numa pessoa real escrevendo sobre si mesma, admito que é provável que exagere as virtudes, ou mesmo os vícios, e que a narração possa soar fantasiosa e distante da realidade quando o autor pretende inculcar nos outros uma ideia que ele mesmo criou sobre si. Um autor mais honesto descreverá a realidade como ela é, ou até onde ele pode vê-la. Ou seja, o autor pode fingir, mas apenas dentro dos limites da sua inteligência.

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Mas este Brás... O Brás que existe nas palavras não tem a mesma fundura do que maneja a pena. O Brás contado não se questiona profundamente a não ser que seja espicaçado, e se o faz, é para não procurar resposta, mas resignar-se à que for mais conveniente. Parece não ter grandes dilemas morais, senão o parecer moral. Enquanto o descrito é ameno, ainda que subserviente aos “nervos” e às paixões, facilmente derrotado pelas adversidades, vive quase como uma pena ao vento, deixando-se ir pelas decisões de outros, sem grandes sonhos ou ambições – além da “sede de nomeada”, que aliás não chega bem a ser uma ambição, mas um motor de suas decisões –, o descritor é perspicaz, acutilante e vê com clareza as origens psicológicas de tal personalidade. A diferença parece-me significativa, mas estou disposta a aceitar que Brás Cubas se transformou depois da morte.

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Curiosidade do Além

 

É de esperar que um livro vindo do além revele algo sobre concepção que o autor tem da vida após a morte. O que este defunto nos parece mostrar – não tanto nas suas palavras, mas no sentimento particular do seu estilo – é que está sozinho no meio do nada, escrevendo porque não tem mais nada que fazer, condenado ao eterno “estar”, sem nunca vir a ser – no fundo, uma continuação na linha da sua vida terrena. É realmente um eterno “descanso”, e a visão não é muito agradável.

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Onde está o espírito?

 

Uma pessoa religiosa sabe que a sua vida interior não lhe é exclusiva: é certo que nenhum indivíduo sabe o que se passa dentro dela, que ideias e desejos, sublimes ou doentios, passam no segredo do seu espírito, mas ela tem consciência de que um poder transcendente assiste a todo o espectáculo do seu teatro interior, e que é isso o que verdadeiramente importa. Para Brás isso é ausente. As personagens das Memórias não se colocam como criaturas perante a Fonte Criadora, dotadas de livre-arbítrio e de uma consciência moral que brota desse posicionamento perante (ou em) Deus. Pelo contrário, elas são meros produtos da natureza e da vida social, regem-se por vícios e não por virtudes, pois as virtudes aqui apenas têm valor quando são validadas pelo meio social. É um mundo onde importam os actos, as aparências, os “estares”, e não os seres. 

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Neste aspecto, a obra é uma excelente crítica social. Existem, de facto, vidas assim, isto é, pessoas que vivem somente por vanglória, cujas almas se mantêm castradas pelo egoísmo, e esta forma de vida inferior contribui sobremaneira para o desvanecimento do espírito, tanto a nível individual como colectivo.

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O livro apresenta-se como um relato da mediocridade que pode instalar-se em qualquer pessoa, independentemente do sexo, classe, raça, ou qualquer outro factor externo. De facto, a mediocridade pode ser incentivada ou até imposta, não obstante – e isto é crença minha – a resignação a ela ser um acto interior.

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Mesmo no Humanitismo a pessoa de Deus está ausente. E outra cena emblemática é o delírio que Brás experimenta quando se encontra às portas da morte (Capítulo VII). Aí ele conhece Pandora, ou a Natureza, que, segundo ela própria, é nossa mãe e nossa inimiga. Ela nos empresta a vida para tirá-la quando não mais lhe formos úteis. Para ela, somos insignificantes minutos! E para o tempo, o que importa é o minuto que ainda vem, não o que passou.

 

Permitam-me fazer aqui outra espaculação. Esta Pandora, para mim, é a deusa dos desalmados. É quem recebe aqueles que em vida renunciaram ao espírito e a honrar a vontade de Deus. São os que receberam o talento e o enterraram, como em Mateus (25:14-30), apenas para serem lançados nas trevas. Mas a Pandora mítica é persuasiva e manipuladora. Quando abriu a sua Caixa, todos os males se escaparam - guerra, ódio, mentira, doenças - e quando a fechou, a Esperança lá se quedou aprisionada. É este cortejo de desgraça que Brás vê no seu delírio. Ele vê todos os séculos desfilarem frente a seus olhos, mas apenas pode ver a miséria, e se há amor, o amor agrava a miséria. O que ele vê - na minha opinião - é o conteúdo que saiu da Caixa de Pandora, mas ele mantém-se ignorante do facto de que a Esperança existe, embora presa na Caixa.

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A morte como nascimento

 

Machado de Assis escreveu este livro após passar um período de doença e isolamento. Habituado a uma vida social rica e movimentada, foi forçado, pelo motivo da saúde, a um descanso prolongado longe do frenesim da cidade. Apesar de se saber pouco sobre a sua vida íntima, é bem provável que a experiência da doença o tenha colocado em confronto com a sua morte e despertado, não só as ideias com que ele rega as Memórias, mas também o cinismo e um aparente niilismo.

 

Brás Cubas renasce do outro lado, mas nunca vemos nele um real crescimento, tampouco aparenta ter havido um "nascer do espírito"; antes vemos uma libertação das pressões mundanas e, de certo modo, um despertar para a falta de sentido da vida. Percebemos isso pela forma como ele descreve as paixões humanas como precárias, efémeras e insignificantes, sem distinção entre as que são acionadas e movidas pelas forças básicas ou pela nossa propensão ao vício, e as que são inspiradas pelo espírito e mantidas pela vocação e pelo amor. Até as atitudes morais são denunciadas como nascidas do egoísmo e da busca da glória terrena. Mas sobretudo, percebe-se o desencanto de Brás para com a existência na sua fala sobre o sal que tempera a nossa vida conturbada, os momentos de felicidade. Diz ele:

 

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“A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura – nada menos que a quimera da felicidade –, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.”

 

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É uma passagem genial, e ilustra na perfeição a teimosia com que o homem tenta, sem sucesso, transformar o efémero em eterno, e como o homem imaturo cria a utopia. Qualquer um de nós tem esta mesma experiência, a dor de tentar agarrar os momentos de prazer mundano para convertê-los em felicidade perpétua.

 

“Felicidade” veio à língua portuguesa a partir do grego “PHYO” (“fecundo”, “produtivo”), através do latim “Felicitas” (de “FELIX”, “Feliz”). Designava o sentimento associado à fertilidade da terra, portanto algo cíclico e temporário, um sentimento de bem-estar e abundância ao que podemos juntar ausência de preocupação e alívio. A ideia que hoje fazemos de felicidade tem isso, mas tem algo mais, que é a necessidade de prolongá-la. Ao juntar-se esse elemento, a felicidade torna-se mais difícil de alcançar, senão impossível, e daí vem a angústia. Não obstante, daí a concluir que ela é uma ilusão vai um grande passo. De facto, a felicidade não se deixa agarrar, mas ela vem a nós plena e sincera nos momentos em que deixamos de persegui-la, pois essa perseguição é uma perversão do espírito, ao menos quando é levada ao extremo e chega a tocar a idolatria ou o fetichismo.

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Sem dúvida que no nosso tempo isto é um problema real e grave. Aliás, foi no século XX que alguém finalmente comercializou e propagou o tal medicamento anti-hipocondríaco – o Valium, ou o calmante. Se este medicamento ajuda algumas situações, piora outras, mas sobretudo não traz um desfecho para o sofrimento humano, pois esse é, como a morte, inalienável. Isto não é dizer que devemos sofrer ou que não devemos minorar o sofrimento; é dizer que devemos aceitá-lo como facto da existência. Se é possível ou não reduzi-lo significativamente, talvez, mas esse é um trabalho lento, secular, e que envolve, sem sombra de dúvida, o despertar da vida interior e a primazia do espírito.

 

 

 

D. Plácida

 

D. Plácida é uma velhinha com uma vida sofrida que adora a Virgília. Ela é a guardiã da casa onde os amantes se encontram. A princípio está relutante em assumir tal “cargo”, visto que contraria as suas crenças e valores, mas acaba por aceitar viver lá, servindo de sentinela enquanto os dois se ocupam um do outro. A história de D. Plácida reza assim:

 

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“Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de D. Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou D. Plácida. É de crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: – Aqui estou. Para que me chamastes? – E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam. – Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia”.

 

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É uma descrição genial que consegue provocar a compaixão pelo ser que sofre, ou até mesmo o dó. Mas também provoca a indignação perante uma aparente arbitrariedade da vida, alheia aos nossos anseios e sonhos. É o que conhecemos por “vida madrasta”, a personificação que edificamos para projectar a culpa das nossas frustrações. É, sim, uma bela descrição, mas por que há-de ser verdadeira? Ou sendo verdadeira em alguns casos, por que devemos considerá-la exemplar? Não creio que é exemplar. A D. Plácida pode ter vindo para queimar os dedos nos tachos e os olhos na costura, mas fica no segredo do seu espírito as alegrias, os amores que viveu, e a lapidação da sua alma. Brás Cubas não conhece, e não vê, esse recanto no interior dos seus interlocutores. Do mesmo modo, nenhum de nós pode avaliar e julgar as almas dos outros por tais reduções. A sabedoria popular, por vezes, é mesmo sábia, e por isso existe o dito “só Deus sabe”, o que vem a calhar.

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É a história miserável da D. Plácida que me leva ao último capítulo do livro. Brás Cubas termina o seu testamento fazendo um balanço da sua vida. Coisa curiosa, ser a própria pessoa a fazê-lo, pois tal implica a aquisição de uma sabedoria divina e superior. Neste balanço ele pesa todas as negativas - não conheceu o casamento, não foi ministro, não foi califa, e não alcançou a celebridade do emplastro; por outro lado, nunca precisou de "comprar o pão com o suor do [seu] rosto"; e mais, não teve a má sorte de D. Plácida nem do Quincas Borba; feitas as contas, o saldo está quite. Porém, falta somar a última negativa que lhe dará o saldo positivo - "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".

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A dúvida permanece: quem diz isto é o Machado ou o Brás? Nunca saberemos. Facto é que Machado de Assis nunca teve filhos, porém ignora-se se tal foi por decisão ou impossibilidade. Mas o que nos interessa aqui é o peso da frase que encerra o livro. Se alguém leu esta história com a vontade de resgatar a Esperança da Caixa de Pandora, saiu gorado. Acabou-se. Não só não há legado, como o legado é uma miséria. Esta é uma linha de pensamento marcada por um evasionismo que surge da experiência do tal assombro que permeia este livro. A vida é dura e nós não sabemos lidar com isso, logo, nascemos para sofrer, como a D. Plácida, logo, não ter filhos é uma boa acção. Contudo, a filosofia do Humanitismo postulava que a pior desgraça é não nascer. Mas, pensando bem, Quincas Borba era um louco. Ficamos então neste vai-vem, entre o delírio e a sanidade, percorrendo uma história onde não há heróis, excepto, talvez, o verme que primeiro roeu as frias carnes do cadáver de Brás Cubas, a quem ele dedica as Memórias.

 

Olhemos ao nosso redor para ver como estas ideias evasionistas estão disseminadas. Vasto é o impacto da flor amarela e mórbida da hipocondria, e é seguro dizer que a modernidade inventou um emplastro que nos é servido nas mais variadas formas. Ouso dizer que a própria escrita deste livro possa ter sido um emplastro para Machado de Assis, mas isto é apenas especulação. 

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Assim termino, dizendo que também "só Deus sabe" o que foi na alma de Machado de Assis quando criou Brás Cubas e suas Memórias. Na minha, fica a vontade de dizer: caramba, Machado! Desceste ao abismo niilista e de lá trouxeste apenas um sorriso amarelo e um emplastro que mais parece um placebo. Mas não faz mal. Na verdade, quem nunca? Não é obrigatório que um livro nos dê respostas definitivas, mas convém que retrate um pedaço da realidade. Foi o que fizeste em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Levas o leitor a confrontar-se com as questões nucleares da existência, e só por isso é leitura fecunda. De resto, perdoar-me-ás se te entendi mal.

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9 Maio 2021

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